segunda-feira, novembro 26, 2007

Contos da crípta

A inclusão digital chegou ao reino do além. Fantasmas há muito tempo esquecidos podem se comunicar com os vivos. Graças à globalização, atingimos lugares antes nunca imaginados.

Fantasmas são os seres que ainda teriam uma missão a concluir deste lado de cá da existência; planos inacabados e todo o resto que nós já sabemos... Talvez por isso eles desejem tanto se comunicar conosco. Nada mais justo! Agora podemos receber e-mail’s dos falecidos e até ter uma conversa informal pelo msn com o nosso querido Allan Kardec. Ainda não achei nenhum espírito vagando pelo Orkut, mas com um pouco de fé e com a ajuda do e-mule, tudo torna-se possível nos dias de hoje.

Estava seguindo outro dia pela rua, quando ouvi um sussurro. Não soube dizer o que aconteceu exatamente. Talvez algum ruído branco no meu mp4... Esses fantasmas realmente nos pregam cada peça as vezes, sempre uns brincalhões...

quinta-feira, outubro 04, 2007

Crackolândia

Com apenas um empurrão, tudo acabou para sempre. Um sopro foi o suficiente para acabar com a eternidade dos dois. Todos os alicerces do castelo ruíram. Sentaram com os joelhos abraçados contra o peito e ficaram em silêncio vendo tudo ir embora com a tempestade. Ela levantou e saiu correndo atrás das suas loucuras que espalhavam-se pela cidade. Correu cada vez mais lento e sem direção até cair perto do Elevador Lacerda; rolou pela Cidade Baixa e morreu em frente à Conceição da Praia.

Ele tentou segui-la, mas não conseguiu. A cada queda dela, ele limpava as suas feridas e a confortava com palavras. A cada nova escoriação, ela retribuía com uma outra nele. Ao fim ele já estava machucado demais para continuar correndo. Caiu de joelhos e a viu cair no cartão postal. Não teve reação – estava cansado demais para sentir qualquer coisa –, apenas uma tristeza gigante que já era o seu estado natural.

Aos poucos, levantou e buscou achar outros. Procurou por ombros para amparar as suas lágrimas. Percebeu que todos tinham ficado no princípio da jornada. Tentou voltar lentamente ao ponto de partida, mas parecia que o regresso era bem mais penoso... Não encontrou mais seus parceiros, filhos, amigos... Percebeu que estava só.

Percebeu que a corrida tinha sido demais para ele e para todos os que o assistiram correr. Percebeu que as feridas tinham sido muito mais profundas do que ele mesmo esperava. Percebeu que já não era mais tão jovem quanto o que pensava que fosse. Percebeu que na queda dela, ele havia morrido também.

sexta-feira, agosto 17, 2007

Português

Sentado em frente à sua velha máquina, repetia o mesmo ritual que se tornara costumeiro neste último ano. Procurava desesperadamente um meio de dar fim à sua história. Seus personagens estavam aprisionados nas suas palavras, vivendo na pilha de papel que se acumulava ao lado da cama. Quase podia ouvi-los gritar esperando o ponto final; este parecia lhe fugir...
Tirou os óculos e coçou a testa já enrugada. A visão já não era tão boa quanto antes e a luz do seu apartamento também não era tão boa assim. Recostou na cadeira e olhou para o teto como se lá pudesse encontrar alguma resposta para os conflitos existentes nas pontas dos seus dedos: apenas a tinta branca desbotada. Escutou o barulho da chuva castigando sua janela.
A um ano atrás, acordou com uma idéia fixa na cabeça. Passou o dia conversando com pessoas imaginárias. Ao longo do mesmo, sua mente tornou-se super povoada. Correu para o armário e achou a máquina de datilografar que pertencera ao seu finado avô. Sentou e desde então não conseguiu mais parar de escrever. Aos poucos foi perdendo os amigos, o trabalho, o interesse por tudo. Visava apenas saber como terminaria toda aquela confusão que se instaurou em sua mente.
Com o passar do tempo, viu-se escravo dos seus personagens. Já não tinha mais controle sobre o que saía no papel. Deixou que eles vivessem a sua própria vida. O telefone parou de tocar, as contas continuavam se acumulando sob a porta. Não tinha mais muito em casa para sobreviver. Só viveria quando terminasse com a vida das suas criaturas.
Passou de autor à personagem também.
Sentia o sarcasmo que os seres do papel usavam ao se referir a ele. Tentava fugir, mas estes o manipulavam. Sentia muito medo quando sentava na sua escrivaninha, pois não sabia o que poderia acontecer em mais uma noite de literatura. Era tudo tão real que se sentia perseguido. Quando não podia mais, começava a escrever nas paredes. A sua história estava espalhada por todos os lados.
Estava na cama com as mãos trêmulas segurando um copo de água. Abriu as janelas, e junto com o vento, a chuva entrou. Os papeis voaram pela casa. Um redemoinho de vidas alheias tomou conta de tudo. Ouvia seus personagens gritando por suas vidas.
Correu para a velha máquina e sentou para escrever pela última vez. Não houve nada de novo. Nenhuma reviravolta. Apenas terminou com três pontos, já que sabia que nada daquilo nunca terminaria.
Vestiu o paletó já empoeirado enquanto tudo voava pelos ares. As folhas já eram borrões de tudo que já havia acontecido. Os pontos eram a continuação para algo que ele sabia que não continuaria. Sabia que eles – seus personagens – tomariam o controle daquele momento em diante.
Trancou a porta atrás de si antes de voltar à sua vida, deixando o redemoinho terminar o seu serviço...

quarta-feira, julho 04, 2007

Caiporismo

As vezes é tão difícil, que nem saberia como (d)escrever...

quarta-feira, maio 30, 2007

Mamíferos

Sou mãe pela metade. Sim, tive meu filho e carreguei-o durante os longos nove meses que se seguiram. Amamentei-o com todo o meu leite. Ele morreu tem poucas horas. Estou sentada do lado de fora da sala do doutor. Procuro por um choro infantil mas não encontro nada além das lamentações adultas. Sinto o seu peso em meus braços e olho para os meus seios cheios de vida ainda, fartos... Não sei o que fazer com todo esse resto de corpo que virei.

Abraço meus joelhos com força e rezo baixinho para que ele acorde. Rezo para que tudo seja um sonho ruim. Alguém me oferece um calmante; não quero ficar calma. Meu filho morreu e não existe calma em nada disso. Apenas vazio. Um grande vazio. Penso com quem poderia compartilhar a minha dor, mas acho que seria dor demais para ser suportada por outra pessoa. Não tenho outra pessoa. Sou mulher, sou só.

De repente gostaria que toda a alegria do mundo acabasse para perceberem que meu filho morreu. As pessoas ainda andam na rua, sorriem. As folhas não caem, o dia continua bonito, a vida continua de uma certa maneira, mas o meu filho permanece morto.

Levanto para olhar o seu pobre corpo pelo vidro. Vejo tantos fios e aparelhos ao seu redor. Minha pequena criança parece tão sossegada alheia a tudo aquilo. Mordo a palma da mão enquanto as lágrimas não param de cair. Sinto o corpo todo tremer só em lembrar o seu cheiro.

Olho para os lados e não vejo ninguém. Empurro a porta que abre fácil para dentro. Vou ao seu encontro e pego-o nos braços. Está tão frio que o aperto cada vez mais contra meu peito. Meu menino deve estar com fome. Rapidamente levanto a blusa e tiro o meu seio para fora. Coloco em sua boca e aperto o leite para dentro da sua garganta. Sua boca enche e começa a escorrer pelos lados molhando todos os lençóis embaixo. Nada mais sinto quando percebo que toda aquela vida se esvai de mim.

quarta-feira, abril 18, 2007

Designação

Hoje eu acordei com uma saudade danada dentro do peito. Uma dor aguda e distante que foi batizada em outro continente por esse nome. Os sentimentos foram nomeados com uma função; as dores dos barcos que partem e dos acenos nas costas lusitanas. Algo tão antigo e tradicional que veio morrer aqui ao meu lado agora. Acordei com uma saudade que só existe em sambas-canções!

Acordei com uma dificuldade de organizar pensamentos. Toda a razão grega de Platão deu lugar ao sentimentalismo barroco e a dramaticidade latina. Minha dor foi sufocada pela fatalidade do todo. A saudade veio como fruto da solidão, e quando tudo apertou, abracei o travesseiro bem forte: só o meu cheiro estava lá. Lendo as minhas palavras, elas eram apenas minhas. Olhando as minhas fotos, só, eu estava lá. Pensei na árvore que cai na floresta e ninguém vê. Será que ela realmente caiu? Pensei se estava realmente triste se não tinha ninguém com quem compartilhar isso.

Em tempos modernos, as dores vêem dos ônibus e aviões; pois assim como os bares, os namoros chegam à falência.

Não há público para nada disto.

quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Segundos, minutos e terceiros

Depois de três dias não sentia mais seu cheiro.

Em uma semana não lembrava mais da sua voz.

Esqueci a cor dos seus olhos com o passar do tempo.

Não reconheci mais o seu rosto em uma foto do jornal de amanhã.

Seu corpo me pareceu estranho depois dos outros amores.

O toque era ríspido após um verão.

Não sabia de mais nada depois de uns anos.

Fiquei na janela, esperando o dia passar.

domingo, fevereiro 25, 2007

João e Maria

Madalena desceu a ladeira. Disse que para o meu barracão não queria mais voltar. Saiu com uma trouxa de roupas na cabeça, indo para a casa dos pais. Mesmo depois da quarta-feira de cinzas, o café ainda não estava pronto. Fiquei sentado na sala esperando a porta abrir. Madalena realmente tinha ido.

Fui procurar por suas amigas, mas nenhuma tinha notícias, nos bares ela também não estava, nunca fora mulher disto. Contei algumas moedas no bolso e fui ligar, mas o telefone não atendia. A cidade estava se erguendo do carnaval, e o cheiro quente do suor no asfalto ainda estava lá.

Voltei para casa, e esta continuava vazia. Deitado no colchão penso em Madalena. Talvez o morro fosse pouco para ela, talvez a vontade fosse pouca... Ela não era Amélia, e descobriu que a fome era feia. Queria acordar em um poema e encontra-la nas rimas, nos versos. Queria ver toda a beleza e lirismo da tristeza e do sofrimento. Sofrimento só era bonito nas palavras, não no peito.

De repente, tudo fazia menos sentido. Não queria mais tocar o meu violão. Comi pouco e esperei a quinta amanhecer. Seu cheiro estava em todo lugar e ficar naquela mesma cama que antes era nossa não valia mais a pena. Pensei em correr ao seu encontro, mas tinha sido proibido. Não poderia ficar com alguém que não quisesse o mesmo.

Voltei para a minha rotina. Acreditei que ela voltaria. Pensei nisso. Acreditei que o amor passaria assim como o samba, mas sabia que estava apenas me enganando.