sexta-feira, agosto 17, 2007

Português

Sentado em frente à sua velha máquina, repetia o mesmo ritual que se tornara costumeiro neste último ano. Procurava desesperadamente um meio de dar fim à sua história. Seus personagens estavam aprisionados nas suas palavras, vivendo na pilha de papel que se acumulava ao lado da cama. Quase podia ouvi-los gritar esperando o ponto final; este parecia lhe fugir...
Tirou os óculos e coçou a testa já enrugada. A visão já não era tão boa quanto antes e a luz do seu apartamento também não era tão boa assim. Recostou na cadeira e olhou para o teto como se lá pudesse encontrar alguma resposta para os conflitos existentes nas pontas dos seus dedos: apenas a tinta branca desbotada. Escutou o barulho da chuva castigando sua janela.
A um ano atrás, acordou com uma idéia fixa na cabeça. Passou o dia conversando com pessoas imaginárias. Ao longo do mesmo, sua mente tornou-se super povoada. Correu para o armário e achou a máquina de datilografar que pertencera ao seu finado avô. Sentou e desde então não conseguiu mais parar de escrever. Aos poucos foi perdendo os amigos, o trabalho, o interesse por tudo. Visava apenas saber como terminaria toda aquela confusão que se instaurou em sua mente.
Com o passar do tempo, viu-se escravo dos seus personagens. Já não tinha mais controle sobre o que saía no papel. Deixou que eles vivessem a sua própria vida. O telefone parou de tocar, as contas continuavam se acumulando sob a porta. Não tinha mais muito em casa para sobreviver. Só viveria quando terminasse com a vida das suas criaturas.
Passou de autor à personagem também.
Sentia o sarcasmo que os seres do papel usavam ao se referir a ele. Tentava fugir, mas estes o manipulavam. Sentia muito medo quando sentava na sua escrivaninha, pois não sabia o que poderia acontecer em mais uma noite de literatura. Era tudo tão real que se sentia perseguido. Quando não podia mais, começava a escrever nas paredes. A sua história estava espalhada por todos os lados.
Estava na cama com as mãos trêmulas segurando um copo de água. Abriu as janelas, e junto com o vento, a chuva entrou. Os papeis voaram pela casa. Um redemoinho de vidas alheias tomou conta de tudo. Ouvia seus personagens gritando por suas vidas.
Correu para a velha máquina e sentou para escrever pela última vez. Não houve nada de novo. Nenhuma reviravolta. Apenas terminou com três pontos, já que sabia que nada daquilo nunca terminaria.
Vestiu o paletó já empoeirado enquanto tudo voava pelos ares. As folhas já eram borrões de tudo que já havia acontecido. Os pontos eram a continuação para algo que ele sabia que não continuaria. Sabia que eles – seus personagens – tomariam o controle daquele momento em diante.
Trancou a porta atrás de si antes de voltar à sua vida, deixando o redemoinho terminar o seu serviço...